Introdução: A Evolução da Terminologia e suas Implicações

Introdução

Antes de mergulharmos na complexa questão do ônus da prova em ações de responsabilidade médica, é crucial abordar uma recente e significativa mudança na classificação dos processos judiciais relacionados a este tema. Em fevereiro de 2024, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) implementou uma alteração importante na Tabela Processual Unificada (TPU) do Poder Judiciário, atendendo a um pedido do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC), apoiado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM).

Esta mudança eliminou a categoria “erro médico” do sistema de classificação de processos. Agora, os casos anteriormente classificados como “erro médico” passam a ser categorizados como “danos materiais e/ou morais decorrentes da prestação de serviços de saúde”. Esta alteração não é meramente semântica; ela reflete uma compreensão mais nuançada e precisa da complexidade envolvida na prática médica e nas eventuais intercorrências que podem surgir durante o tratamento.

A nova classificação reconhece que nem todos os desfechos negativos em procedimentos médicos são necessariamente resultado de erros, podendo decorrer de uma variedade de fatores, incluindo riscos inerentes aos procedimentos, respostas individuais dos pacientes e limitações da ciência médica.

Para os profissionais de saúde, esta mudança representa um passo importante na direção de uma avaliação mais justa e equilibrada dos casos de responsabilidade médica. No entanto, é fundamental entender que, embora a terminologia tenha mudado, os princípios legais que regem a responsabilidade médica e, crucialmente, as questões relacionadas ao ônus da prova, permanecem em grande parte inalterados.

O Conceito de Ônus da Prova e sua Relevância nas Ações de Responsabilidade Médica

O ônus da prova é um conceito jurídico fundamental que determina qual parte em um processo judicial tem a responsabilidade de provar as alegações feitas. No contexto das ações de responsabilidade médica, este conceito ganha contornos particularmente complexos e significativos.

Regra Geral do Ônus da Prova

De acordo com o artigo 373 do Código de Processo Civil brasileiro:

  • Ao autor da ação cabe provar os fatos constitutivos de seu direito;
  • Ao réu cabe provar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor.

Em tese, isso significaria que, em uma ação de responsabilidade médica, caberia ao paciente (autor) provar que o médico ou a instituição de saúde (réu) agiu com negligência, imprudência ou imperícia, causando-lhe danos.

Complexidades Específicas nas Ações de Responsabilidade Médica

No entanto, a aplicação dessa regra geral nas ações de responsabilidade médica enfrenta desafios significativos:

  1. Complexidade Técnica: A medicina é uma área altamente especializada, cujos detalhes técnicos frequentemente escapam ao entendimento do paciente comum e até mesmo dos operadores do direito.
  2. Assimetria de Informações: O profissional de saúde e a instituição médica geralmente têm acesso a muito mais informações sobre o caso (prontuários, exames, etc.) do que o paciente.
  3. Vulnerabilidade do Paciente: O paciente, muitas vezes, encontra-se em posição de vulnerabilidade, tanto técnica quanto emocional, em relação ao profissional de saúde.
  4. Natureza dos Procedimentos Médicos: Muitos procedimentos médicos ocorrem em ambientes fechados (como salas de cirurgia), sem a presença de testemunhas além da equipe médica.

Estas particularidades têm levado os tribunais a adotarem uma abordagem mais flexível quanto ao ônus da prova nestes casos, frequentemente recorrendo à inversão do ônus da prova ou à teoria da distribuição dinâmica do ônus probatório.

A Inversão do Ônus da Prova nas Ações de Responsabilidade Médica

A inversão do ônus da prova é um mecanismo jurídico que altera a distribuição normal da responsabilidade probatória, transferindo-a, total ou parcialmente, para a parte que, em tese, teria melhores condições de produzir a prova.

Fundamentos Legais para a Inversão do Ônus da Prova

1. Código de Defesa do Consumidor (CDC):

O artigo 6º, VIII, do CDC prevê a possibilidade de inversão do ônus da prova quando:

  • Houver verossimilhança das alegações do consumidor; ou
  • For constatada a hipossuficiência do consumidor.

2. Código de Processo Civil (CPC/2015):

O artigo 373, §1º, do CPC/2015 introduziu a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, permitindo ao juiz atribuir o ônus probatório à parte que tiver melhores condições de produzi-la.

Aplicação nos Casos de Responsabilidade Médica

A jurisprudência brasileira tem frequentemente aplicado estes dispositivos em ações de responsabilidade médica. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem consistentemente afirmado que a responsabilidade subjetiva do médico não exclui a possibilidade de inversão do ônus da prova, desde que presentes os requisitos legais.

Casos Ilustrativos:

1. AgInt no AREsp 2001746/SP (STJ, 2022):

“A responsabilidade do médico (CDC, art. 14, § 4º) não exclui a possibilidade de inversão do ônus da prova, se presentes os requisitos do art. 6º, VIII, do CDC, devendo o profissional demonstrar ter agido com respeito às orientações técnicas aplicáveis.”

2. AREsp 1682349/DF (STJ, 2020):

“No erro médico, barreiras de todo tipo – técnicas, de informação, econômicas, de status social e de espírito de corpo da profissão – contribuem para, com frequência, transmutar o ônus probatório da vítima em via crucis rumo ao impossível, convertendo, assim, o direito de acesso ao Judiciário em irrealizável fantasia de justiça. Então, legal e legítima a inversão do ônus da prova ope iudicis na relação de consumo, pública ou privada, que tem por objeto prestação de serviço médico.”

3. REsp 1921573/MG (STJ, 2022):

“A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça trilha o entendimento de que a distribuição do ônus probatório é regra dinâmica que deve ser interpretada conforme o caso concreto, devendo o referido ônus recair sobre a parte que tiver melhores condições de produzir a prova.”

Implicações Práticas para os Profissionais de Saúde

A tendência jurisprudencial de inversão do ônus da prova em ações de responsabilidade médica tem implicações significativas para os profissionais de saúde:

1. Documentação Rigorosa:

  • Torna-se crucial manter registros meticulosos de todos os procedimentos, diagnósticos e tratamentos.
  • O prontuário médico passa a ser não apenas um documento clínico, mas uma peça fundamental de defesa legal.

2. Comunicação Clara e Documentada:

  • A importância do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) é amplificada.
  • Todas as explicações sobre riscos, benefícios e alternativas de tratamento devem ser documentadas.

3. Atualização Constante:

  • É essencial manter-se atualizado sobre as melhores práticas e protocolos médicos.
  • A demonstração de que o profissional seguiu as diretrizes mais recentes pode ser crucial em sua defesa.

4. Preparação para Litígios:

  • É aconselhável que os profissionais de saúde estejam preparados para potenciais ações judiciais.
  • A contratação de seguros de responsabilidade civil profissional pode ser uma medida prudente.

5. Abordagem Multidisciplinar:

Em casos complexos, a colaboração com outros especialistas e a documentação dessas consultas pode fortalecer a posição do profissional.

Limites da Inversão do Ônus da Prova

É importante notar que a inversão do ônus da prova não é automática nem absoluta:

1. Decisão Judicial Fundamentada:

A inversão deve ser decidida pelo juiz, com base nas especificidades de cada caso.

2. Não Implica em Presunção de Culpa:

A inversão do ônus da prova não significa que o médico seja presumidamente culpado, apenas que ele terá que demonstrar que agiu conforme os padrões técnicos e éticos da profissão.

3. Prova Diabólica:

Não se pode exigir do profissional de saúde a produção de prova impossível ou excessivamente onerosa.

4. Manutenção da Responsabilidade Subjetiva:

A inversão do ônus da prova não altera a natureza subjetiva da responsabilidade médica, que continua dependendo da demonstração de culpa.

 

Conclusão

A mudança na classificação dos processos judiciais, eliminando a categoria “erro médico”, representa um avanço importante no reconhecimento da complexidade da prática médica. No entanto, esta alteração não diminui a necessidade de os profissionais de saúde estarem preparados para potenciais ações de responsabilidade civil.

A tendência de inversão do ônus da prova em ações de responsabilidade médica reflete um esforço do sistema judicial para equilibrar a relação processual, considerando a vulnerabilidade técnica do paciente. Para os profissionais de saúde, isso significa uma necessidade ainda maior de documentação rigorosa, comunicação clara e adesão estrita aos protocolos e melhores práticas médicas.

Em última análise, a melhor defesa contra ações de responsabilidade médica continua sendo uma prática profissional ética, atualizada e centrada no paciente, aliada a uma documentação meticulosa e uma comunicação efetiva. Os profissionais de saúde que adotam essas práticas não apenas se protegem legalmente, mas também elevam o padrão de cuidado oferecido aos seus pacientes.

Referências

  1. Conselho Federal de Medicina. (2024). Justiça elimina categoria “erro médico” do sistema de classificação de processos a pedido de entidades médicas. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/justica-elimina-categoria-erro-medico-do-sistema-de-classificacao-de-processos-a-pedido-de-entidades-medicas
  2. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 2224577/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 21/08/2023, DJe 23/08/2023.
  3. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 1951076/ES, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 21/02/2022, DJe 25/02/2022.
  4. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 2001746/SP, QUARTA TURMA, julgado em 21/10/2022.
  5. Superior Tribunal de Justiça. AREsp 1682349/DF, julgado em 22/10/2020.
  6. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1921573/MG, julgado em 23/02/2022.
  7. Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), artigo 373.
  8. Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), artigo 6º, VIII.

Adv. Fernanda Azanha Angotti
OAB/SP 298.096