Gravação de Consultas por Pacientes: O Que Dizem as Leis e os Conselhos de Medicina
Introdução
Com o avanço da tecnologia e a disseminação dos smartphones, tornou-se comum que pacientes gravem consultas médicas com o intuito de registrar informações para uso pessoal ou, em alguns casos, para documentar o atendimento. Contudo, a gravação de uma consulta por parte do paciente suscita dúvidas jurídicas e éticas relevantes. Este artigo tem como objetivo esclarecer, com base no ordenamento jurídico brasileiro e em pareceres dos Conselhos Regionais de Medicina, os limites e as possibilidades dessa prática, bem como os direitos do profissional da saúde.
1. O paciente pode gravar a consulta?
Sim. A gravação da consulta pelo paciente é permitida, desde que o paciente seja parte da conversa. Tal conduta não configura ilicitude, mesmo que a gravação seja feita sem o conhecimento do profissional. Isso decorre do entendimento consolidado de que é lícito gravar uma conversa da qual se participa.
✔ Parecer CREMERJ n.º 89/2000: A gravação por parte do paciente não é considerada ilícita ou antiética, pois o paciente é o “dono do sigilo”. Contudo, a gravação deve ocorrer com a ciência e, preferencialmente, com a concordância do médico, que também pode recusar o atendimento caso não se sinta seguro (exceto em situações de urgência/emergência).
✔ Parecer CREMESE n.º 001/2018: Reforça que a gravação pelo paciente é permitida, desde que com a ciência e preferencialmente com anuência do profissional. O médico pode se recusar a atender se isso prejudicar o relacionamento terapêutico.
✔ Parecer CREMESP n.º 122508/2018: Reitera que a gravação, por si só, não é um ato ilícito. Entretanto, recomenda que o profissional adote medidas preventivas, como solicitar assinatura de termo de confidencialidade, registrar a gravação no prontuário e, em último caso, recusar o atendimento não urgente.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entendeu que a filmagem feita às escondidas e divulgada sem autorização em perfil de rede social de conteúdo humorístico constitui violação ao direito de imagem, ensejando indenização por danos morais:
“A utilização da imagem do autor em momento de privacidade, obtida às escondidas e divulgada sem sua autorização em conta do Instagram direcionada à produção de memes, ironias e notícias inusitadas, transcendeu o direito dos réus à liberdade de expressão, consubstanciando ato ilícito por se caracterizar como ofensiva e vexatória. O dano decorrente da utilização indevida e vexatória de imagem é in re ipsa.”
(TJ-RS – Apelação Cível nº 5006258-53.2022.8.21.0019, rel. Desª Cláudia Maria Hardt, julgado em 26/06/2024).
2. A gravação pode ser divulgada?
Não. Embora o paciente possa gravar a consulta, a divulgação do conteúdo gravado sem autorização do profissional é vedada e pode gerar responsabilidade civil e até criminal, a depender do teor da publicação.
Fundamentos legais:
- Art. 5º, X da Constituição Federal: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”
- Art. 20 do Código Civil: Proíbe a divulgação da imagem sem autorização, salvo em casos de interesse público.
- LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados – Lei n.º 13.709/2018): Considera voz e imagem como dados pessoais, exigindo base legal e consentimento para seu tratamento.
- REsp 1.630.851/STJ: Reconhece a voz como parte do direito da personalidade, sendo vedada sua utilização sem consentimento.
✔ O Parecer CREMESP n.º 122508/2018 destaca que o uso da gravação, ainda que feita de forma lícita, não pode ser público sem a anuência do profissional, sob pena de responsabilidade judicial por uso indevido da imagem e da voz.
3. Recomendações jurídicas e preventivas para os profissionais da saúde
Diante da possibilidade de gravações, o profissional da saúde deve adotar condutas protetivas:
- Exigir assinatura de termo de consentimento/confidencialidade, caso o paciente deseje gravar.
- Registrar no prontuário que houve gravação e se o paciente assinou ou se recusou a assinar o termo.
- Recusar o atendimento, se não se sentir seguro e se não houver urgência, conforme art. 36, §1º do Código de Ética Médica: “Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que lhe suceder.”
- Gravar também a consulta, se julgar necessário, informando e registrando no prontuário.
Essas medidas fortalecem o vínculo com o paciente e conferem segurança jurídica ao atendimento, permitindo que o profissional reaja de forma proporcional e fundamentada em caso de litígios.
4. Responsabilização do paciente por uso indevido da gravação
Se o paciente fizer uso indevido da gravação ou da imagem/voz do profissional, poderão ser adotadas medidas judiciais e administrativas:
- Notificação extrajudicial para remoção do conteúdo divulgado indevidamente;
- Ação de indenização por danos morais, com base na violação de direitos da personalidade;
- Queixa-crime, nos casos de calúnia, difamação ou injúria (arts. 138 a 140 do Código Penal), com agravante se em rede social (art. 141, III);
- Registro de boletim de ocorrência e possível denúncia ao Ministério Público;
- Ação com base na LGPD, quando houver violação do tratamento de dados pessoais (voz, imagem, informações sensíveis).
Conclusão
A gravação de consulta pelo paciente não é proibida, mas seu uso está sujeito a limites legais e éticos. A exposição indevida da imagem ou voz do profissional da saúde sem consentimento é ilegal e pode ensejar medidas judiciais. O profissional deve adotar condutas preventivas e, se necessário, buscar respaldo jurídico especializado.
Mais do que proibir, o adequado é regular, por meio de instrumentos jurídicos (termos de consentimento, registros no prontuário e eventuais notificações), fortalecendo a relação profissional-paciente e preservando os direitos de ambas as partes.
Adv. Fernanda Azanha Angotti
OAB/SP 298.096
Referências:
- Parecer CREMERJ n.º 89/2000 – https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/pareceres/RJ/2000/89_2000.pdf
- Parecer CREMESE n.º 001/2018 – https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/pareceres/SE/2018/1_2018.pdf
- Parecer CREMESP n.º 122508/2018 – https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Pareceres&dif=s&ficha=1&id=15369
- Constituição Federal de 1988, art. 5º, X
- Código Civil Brasileiro, art. 20
- Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), Lei n.º 13.709/2018
- Código Penal Brasileiro, arts. 138 a 141
- REsp 1.630.851/STJ

