Tirzepatida na Clínica: Uma análise Jurídica e Sanitária

 

Introdução

A Tirzepatida, com seu crescente papel na Medicina, especialmente em áreas como Nutrologia e Endocrinologia, oferece grandes avanços terapêuticos. Contudo, para clínicas e profissionais de saúde, a sua manipulação e aplicação exigem um rigoroso cumprimento de normas jurídicas e sanitárias. Nosso objetivo é desmistificar essas diretrizes, permitindo que você atue com segurança e ética.
Entendemos que a realidade clínica pode gerar dúvidas e, por vezes, um desejo de assumir riscos calculados. No entanto, é crucial compreender que a “liberdade de escolha” pode acarretar sérias consequências legais e éticas. Como bem pontuado, “o quanto de risco você quer assumir perante essa atividade?” é uma pergunta central, e a resposta deve sempre pender para a segurança do paciente e a conformidade regulatória.

 

É Permitido Manipular Tirzepatida?

Sim, é permitido, desde que a farmácia de manipulação cumpra com requisitos rigorosos e a sua clínica siga as diretrizes para a prescrição e aplicação. Algumas das condições são:

  • A farmácia deve possuir registro sanitário adequado junto à ANVISA.
  • A procedência do Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) deve ser legal e regularizada.
  • A importação do insumo necessita de autorização da Anvisa, com documentação comprobatória.
  • A prescrição deve ser sempre individualizada e personalizada para cada paciente.

 

O Que NÃO é Permitido na Prática Clínica?

É fundamental que as clínicas e os profissionais estejam cientes das seguintes proibições, que ressoam com a sua preocupação sobre os riscos assumidos:

  • Estoque ou Revenda de Medicamentos Manipulados: Clínicas não podem estocar ou revender medicamentos manipulados sem um licenciamento sanitário específico para tal. A vigilância pode atuar se “o estoque for usado para comercialização direta (venda de doses sem atendimento clínico)”.
  • Receber Brindes ou Comissões: É estritamente proibido aceitar brindes, bonificações ou comissões de farmácias em troca da venda de medicamentos.
  • Aplicação em Casa pelo Paciente: Não é permitido entregar o produto manipulado para o paciente aplicar sozinho em casa. Esse risco é significativo e pode levar a interdição e outras sanções.
  • Tratamento sem Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE): Realizar qualquer tratamento sem este documento é proibido e expõe o profissional e a clínica a ações éticas e jurídicas.
  • Manipulação em Massa ou Promoção Comercial Indevida: A proibição maior reside na “manipulação em massa para revenda ou comercialização sem prescrição (caráter industrial)” e na “promoção comercial do medicamento manipulado como se fosse o de referência, usando marca registrada (ex: “Mounjaro manipulado”)”, sendo, inclusive, publicidade irregular de acordo com as Resoluções do Conselho Federal de Medicina.

 

Riscos Jurídicos e Consequências para a Clínica

Ignorar as regulamentações pode levar a consequências graves, como:

1. Interdição: Da clínica e da farmácia por irregularidades na manipulação.
2. Exercício Ilegal da Medicina: Se o prescritor não possuir qualificação para a conduta.
3. Falsa Especialização: Profissionais sem Registro de Qualificação de Especialista (RQE) se posicionarem como especialistas ensejam investigação ética perante CRM/CFM.
4. Ações Éticas: No âmbito dos Conselhos de Classes.
5. Sanções Sanitárias: Da vigilância sanitária por ausência de documentação obrigatória.
6. Crime de Falsificação de Medicamento: Em casos de manipulação irregular, prescrição e utilização indevida, há “enquadramento em crime de falsificação de medicamento (art. 273 do Código Penal) quando há desvio das regras)”.

É vital entender que, ao “assumir o risco”, você está se expondo a essas severas consequências.

 

Riscos Jurídicos e Consequências para a Clínica

A complexidade da Tirzepatida e a sua indicação para condições sistêmicas, como diabetes tipo 2 e obesidade, geram debates sobre a abrangência de sua prescrição e aplicação por diferentes profissionais de saúde. É fundamental que cada profissional esteja atento às suas competências e limites éticos e legais definidos por seus respectivos conselhos.

 

O Cirurgião-Dentista Pode Prescrever Mounjaro (Tirzepatida)?

Sim, de acordo com o Conselho Federal de Odontologia (CFO), o cirurgião-dentista pode, sim, prescrever Mounjaro (Tirzepatida), desde que dentro de sua área de atuação e com responsabilidade. Uma matéria publicada pelo CFO, disponível em website.cfo.org.br/mounjaro-pode-prescrever-e-um-ato-de-responsabilidade/, esclarece que a prescrição de medicamentos, incluindo a Tirzepatida, é um ato de responsabilidade inerente à profissão, quando esta se justifica no tratamento de condições que afetam direta ou indiretamente a saúde bucal e áreas correlatas.

Isso significa que, dentro da sua autonomia profissional, e considerando o estudo aprofundado da condição do paciente e as interrelações com a Odontologia (como comorbidades sistêmicas que impactam o tratamento odontológico ou que podem ser influenciadas pelo estado de saúde geral, tal qual a apneia obstrutivo do sono, por exemplo), o cirurgião-dentista pode prescrever este tipo de medicamento. A chave é a justificativa clínica sólida e a responsabilidade ética, alinhada com as diretrizes do Conselho e o devido registro no prontuário odontológico.

 

O Biomédico Não Pode Aplicar Tirzepatida

Por outro lado, é crucial entender que nem todos os profissionais de saúde têm autonomia para todas as etapas do tratamento com Tirzepatida. O Conselho Federal de Biomedicina (CFBM) tem sido categórico em suas orientações, afirmando que profissionais biomédicos não estão autorizados a realizar a aplicação (administração) da Tirzepatida.

Conforme esclarecimento disponível no site do CFBM, em cfbm.gov.br/esclarecimentos-sobre-a-proibicao-da-aplicacao-de-tirzepatida-por-profissionais-biomedicos/, a competência para aplicação de medicamentos está restrita a determinadas categorias profissionais, e a biomedicina, embora crucial em diagnóstico e análises, não contempla a administração de medicamentos injetáveis como parte de suas atribuições regulamentadas. Essa distinção é vital para evitar o “Exercício Ilegal da Medicina” ou de atos privativos de outras profissões, o que poderia gerar sérias implicações legais e éticas para o profissional e a clínica.

 

Documentação Essencial: Exigências para a Sua Segurança

Para operar legalmente, sua clínica deve exigir documentos específicos da farmácia de manipulação e manter sua própria documentação em dia.

 

Documentos Que a Clínica Deve Exigir da Farmácia de Manipulação:

  • Alvará sanitário vigente e licença da ANVISA.
  • Certidão de Regularidade junto ao Conselho Regional de Farmácia (CRF).
  • Ficha Técnica do Insumo (IFA) e sua autorização de importação, quando aplicável.
  • Contrato de prestação de serviços com a farmácia de manipulação.
  • Certificado de Análise do Lote (Laudo Técnico do Insumo).

Garantias Legais que a Clínica Deve Exigir da Farmácia de Manipulação:

  • Nomeação do Responsável Técnico Farmacêutico.
  • Rótulo do produto com todas as informações exigidas pela legislação.
  • Autorização específica da ANVISA para manipulação, quando necessária.

Documentação Obrigatória na Clínica:

Manter uma “pasta sanitária completa” é fundamental, incluindo:

  • Documentos Assistenciais: Plano terapêutico individualizado, Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), contrato de prestação de serviços, receituário completo (paciente, CID, posologia), registro do acompanhamento médico.
  • Documentos Regulatórios e Sanitários: Alvará sanitário, licenças municipais/estaduais, certidão de regularidade no conselho da profissão, responsável técnico e documentação da nomeação.
  • Controle Rigoroso: Controle do uso de medicamentos manipulados e IFA. A sua abordagem com “planilhas o frasco que foi aberto, a utilização” e o “prontuário eletrônico” é um excelente exemplo de rastreabilidade necessária.
  • Projetos e Aprovações: Projeto arquitetônico aprovado.
  • Boas Práticas: Manual de Boas Práticas, Procedimentos Operacionais Padrão (POPs), Plano de Gerenciamento de Resíduos de Serviços de Saúde (PGRSS).

Atenção ao Alvará Sanitário: Se o alvará expirar, toda atividade sanitária fica irregular. O alvará é a prova de que o estabelecimento atende às normas de infraestrutura e cumpre os requisitos de boas práticas sanitárias.

Co-working e Regulamentação Local: Para clínicas que operam em modelos de co-working, é imprescindível verificar as “regras específicas” da vigilância sanitária local.

 

Conduta na Prescrição e Acompanhamento

  • Prescrição Baseada em Plano: Sempre prescrever com base em um plano terapêutico individualizado.
  • Ofereça Opções: Apresente ao paciente pelo menos duas opções de farmácias para garantir a liberdade de escolha.
  • Evite Estoque: Nunca mantenha estoque de medicamentos; isso pode ser interpretado como comércio irregular.
  • Registro Detalhado: Registre todas as aplicações, a evolução clínica e as orientações fornecidas ao paciente.

 

Cuidados com a Publicidade nas Redes Sociais

A forma de divulgar seu trabalho online é um ponto crítico. Embora a liberdade de expressão seja valorizada, a Medicina tem regulamentações específicas.

O que NÃO usar:

  • Termos como “tirzepatida”, “Mounjaro” para promover diretamente o medicamento.
  • “Antes e depois” sem um termo de imagem e seguindo as diretrizes do CFM.
  • Palavras como “garantia”, “eficaz”, que configurem promessa de resultado.
  • Declarar-se especialista sem RQE (Registro de Qualificação de Especialista).
  • Promover o medicamento manipulado como se fosse o de referência, usando sua marca registrada (ex: “Mounjaro manipulado”).

O que PODE usar:

  • Falar de abordagens e benefícios gerais do tratamento (ex: manejo da obesidade, diabetes).
  • Compartilhar conteúdo educativo e informativo.
  • Utilizar linguagem clara, sem promessas, com caráter educativo, não promocional.
  • Na Bio: Mencione seu CRM, estado e RQE (se tiver). Se não tiver RQE, use “NÃO ESPECIALISTA” em caixa alta ao mencionar pós-graduações.
  • Uso de Imagens de Pacientes: Permitido apenas com finalidade educativa e seguindo quatro etapas rigorosas, incluindo fotos/vídeos de múltiplos pacientes (4 antes e 4 depois), explicação de complicações e resultados insatisfatórios, e a certeza de que as imagens não são manipuladas e não identificam o paciente.

 

Panorama Regulatório da Manipulação: Patente, Semaglutida e Tirzepatida

Muitas dúvidas surgem sobre a manipulação de substâncias patenteadas e a regulamentação de GLP-1s.

  • Sobre a Patente: A Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96) não proíbe a manipulação em situações específicas. O Art. 43, inciso III, prevê que a proteção da patente “não se aplica à preparação de medicamento de acordo com prescrição médica para casos individuais, executada por profissional”. Isso significa que farmácias de manipulação podem preparar medicamentos sob patente, desde que a preparação seja para prescrição médica individualizada e não em escala comercial ampla.
  • Semaglutida Manipulada: A Nota Técnica nº 200/2025/SEI/GIMED/GGFIS/DIRE4/ANVISA esclarece que a Semaglutida só possui registro para a forma biotecnológica (Ozempic®, Rybelsus®, Wegovy®). Versões “sintéticas” não têm comprovação de segurança/eficácia e não podem ser legalmente manipuladas.
  • Tirzepatida Manipulada: A Nota Técnica nº 92/2024 informa que a Tirzepatida já possui medicamento registrado no Brasil (Mounjaro®). O IFA é obtido por síntese química e tem segurança/eficácia reconhecidas. Pode ser manipulada em farmácias magistrais, desde que a farmácia atenda integralmente à RDC 67/2007, haja prescrição médica individualizada, e o insumo seja adquirido de fornecedor regularizado pela Anvisa.

Pontos Críticos para Inspeção da Vigilância Sanitária

Prepare-se para inspeções prestando atenção aos seguintes pontos, que são frequentemente verificados:

  • Equipamentos
  • Produtos manipulados
  • Plano de Atendimento (PA) não aprovado
  • Materiais e insumos (procedência) – CUIDADO!
  • Lixo (gerenciamento de resíduos)
  • Segurança do Paciente
  • Área física incompatível com as atividades desenvolvidas
  • Acessibilidade
  • Controle de estoque, incluindo vencidos
  • Alvará em local visível
  • Qualificação de fornecedores

 

Boas Práticas

Para atuar com segurança jurídica e sanitária, estabeleça as seguintes boas práticas:

  • Conheça a Legislação: Tenha um entendimento mínimo das leis e regulamentações pertinentes.
  • Assessoria Especializada: Considere contratar alguém com experiência em assuntos regulatórios para implementar e gerenciar a qualidade na clínica.
  • Fluxos Definidos: Defina claramente os processos operacionais.
  • Qualificação de Fornecedores: Certifique-se de que todos os seus fornecedores sejam qualificados e autorizados.
  • Processos de Esterilização: Siga corretamente as normas de esterilização.
  • Tecnologia da Informação: Utilize prontuários eletrônicos e outros sistemas que garantam o registro e a segurança dos dados.
  • Identificação: Tenha locais e informações importantes identificados.
  • Acessórios Obrigatórios: Mantenha todos os acessórios exigidos em dia.
  • Rastreabilidade: Todo processo deve ter rastreabilidade completa.

 

Conclusão: Priorize a Segurança do Paciente e a Conformidade

A utilização da Tirzepatida, seja ela industrializada ou manipulada, representa uma grande responsabilidade. Embora a tentação de “assumir o risco” possa parecer uma via mais rápida, as consequências legais e éticas podem ser devastadoras. A ética profissional e a segurança do paciente devem ser sempre a bússola que orienta cada decisão. É fundamental que cada profissional médico atue estritamente dentro de suas competências e limites estabelecidos por seus conselhos federais.

Ao seguir rigorosamente as normas da ANVISA e as diretrizes dos respectivos conselhos profissionais, você não apenas protege sua clínica e sua carreira, mas, mais importante, garante o melhor e mais seguro atendimento aos seus pacientes. Invista na conformidade, na qualificação de sua equipe e na transparência, e colha os frutos de uma prática médica sólida e respeitada.

 

Fernanda Azanha T. N. Angotti
OAB/SP 298.096

Importante: Este é um texto de caráter meramente informativo e educacional. As informações aqui apresentadas não constituem aconselhamento jurídico e não substituem a consulta a um profissional do direito especializado. Cada caso possui suas particularidades e precisa ser analisado individualmente, considerando aspectos específicos como o CNAE da sua clínica, sua área de atuação e as regulamentações locais.

Referências

  • ANVISA – Nota Técnica nº 200/2025/SEI/GIMED/GGFIS/DIRE4/ANVISA. Harmonização de entendimentos e procedimentos para Importação, Manipulação e controle sanitário de IFAs Agonistas GLP-1.
  • ANVISA – Nota Técnica nº 92/2024. Tirzepatida Manipulada ou Não pode? O que a Nota Técnica n° 92/2024 esclarece.
  • ANVISA – Nota Técnica nº 115/2025/SEI/GIMED/GGFIS/DIRE4/ANVISA. Tema: Manipulação de medicamentos contendo tirzepatida e semaglutida em farmácias magistrais (especialmente injetáveis estéreis).
  • BRASIL. Lei nº 5.991, de 17 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, e dá outras providências.
  • BRASIL. Lei nº 6.360, de 23 de setembro de 1976. Dispõe sobre a Vigilância Sanitária a que ficam sujeitos os Medicamentos, as Drogas, os Insumos Farmacêuticos e Correlatos, Cosméticos, Saneantes e outros produtos, e dá outras providências.
  • BRASIL. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial.
  • BRASIL. Lei nº 12.842, de 10 de julho de 2013. Dispõe sobre o exercício da Medicina.
  • BRASIL. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC nº 67, de 8 de outubro de 2007. Dispõe sobre Boas Práticas de Manipulação de Preparações Magistrais e Oficinais para uso humano em farmácias.
  • BRASIL. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC nº 204, de 20 de julho de 2006. Dispõe sobre as Boas Práticas de Distribuição e Fracionamento de Insumos Farmacêuticos.
  • BRASIL. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC n° 471, de 23 de fevereiro de 2021. Dispõe sobre os critérios para prescrição, dispensação, controle, embalagem e rotulagem de medicamentos antimicrobianos.
  • BRASIL. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC n° 973, de 23 de abril de 2025. Altera a RDC nº 471/2021, ampliando seu escopo.
  • BRASIL. Instrução Normativa – IN nº 360, de 23 de abril de 2025. Define quais substâncias entram no escopo de retenção da receita.
  • BRASIL. Portaria SVS/MS n° 344, de 12 de maio de 1998. Aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial.
  • CONSELHO FEDERAL DE BIOMEDICINA (CFBM). Esclarecimentos sobre a proibição da aplicação de Tirzepatida por profissionais biomédicos. Disponível em: cfbm.gov.br/esclarecimentos-sobre-a-proibicao-da-aplicacao-de-tirzepatida-por-profissionais-biomedicos/.Acesso em: 11 de novembro de 2025.
  • CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA (CFO). Mounjaro pode prescrever e é um ato de responsabilidade. Disponível em: website.cfo.org.br/mounjaro-pode-prescrever-e-um-ato-de-responsabilidade/. Acesso em: 11 de novembro de 2025.