Prontuário Médico: O Direito Inegável do Profissional de Saúde à Sua Própria Defesa
Introdução
Imagine-se na pele de um médico que, após anos de dedicação e ética profissional, se vê diante de um processo ético-profissional ou judicial. A primeira e mais fundamental ferramenta para sua defesa? O prontuário médico do paciente envolvido. No entanto, uma barreira comum e equivocada surge: a negativa de acesso a esse documento vital por parte da instituição de saúde, sob a alegação de violação do sigilo médico.
Este artigo visa desmistificar essa interpretação e esclarecer o direito inalienável do médico ao prontuário para fins de sua defesa, munindo profissionais e gestores de saúde com as informações necessárias.
O Dilema do Sigilo vs. a Ampla Defesa
O sigilo médico é um pilar da relação médico-paciente e um dever ético e legal do profissional de saúde. Ele garante a privacidade e a confiança. Contudo, como todo princípio, não é absoluto e encontra exceções previstas em lei, especialmente quando um “justo motivo” se apresenta. A defesa de um médico em um processo que questiona sua conduta é, sem sombra de dúvidas, um justo motivo.
A confusão surge porque muitas instituições interpretam o dever de sigilo de forma tão restrita que acabam por violar outro direito fundamental: o da ampla defesa e do contraditório, garantidos constitucionalmente.
O Que a Lei e a Ética Médica Dizem?
O Código de Ética Médica (CEM), na Resolução CFM nº 2.217/2018, e outras normas do Conselho Federal de Medicina (CFM) são claros quanto a este direito:
1 – Art. 73 do CEM – O Justo Motivo:
“É vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente.” A defesa do médico em um processo é classificada como um “justo motivo”, autorizando o acesso às informações pertinentes.
2 – Art. 89 do CEM – O Direito à Própria Defesa:
“É vedado ao médico liberar cópias do prontuário sob sua guarda, exceto para atender a ordem judicial ou para sua própria defesa, assim como quando autorizado por escrito pelo paciente.” Este artigo é categórico. Ele concede ao médico o direito explícito de acessar o prontuário para sua própria defesa.
3 – Resolução CFM nº 1.605/2000, Art. 7º:
“Para sua defesa judicial, o médico poderá apresentar a ficha ou prontuário médico à autoridade competente, solicitando que a matéria seja mantida em segredo de justiça.” Esta resolução reforça o entendimento, validando a apresentação do prontuário como peça de defesa, com a devida cautela para a manutenção do sigilo no âmbito do processo.
Por Que Não Há Violação do Sigilo?
A principal razão pela qual o acesso do médico ao prontuário para defesa não viola o sigilo é simples: o médico que atendeu o paciente já está, por lei, vinculado ao dever de sigilo profissional. A informação não está sendo revelada a um terceiro que não tem obrigação de sigilo, mas sim acessada por quem já a possui, sob a égide da confidencialidade.
O médico continua sujeito à responsabilidade criminal (Art. 154 do Código Penal) caso revele indevidamente informações sigilosas. O acesso para defesa é um uso específico e justificado da informação, não uma quebra da confidencialidade.
As Consequências da Negativa Injustificada por Parte da Instituição
A recusa em fornecer o prontuário ao médico para sua defesa pode acarretar sérias consequências para a instituição de saúde e seus diretores:
- Violação de Direitos Fundamentais: A negativa impede o exercício da ampla defesa e do contraditório do profissional, garantidos pela Constituição Federal.
- Responsabilidade Civil: Caso a negativa resulte em prejuízo à defesa do médico, a instituição pode ser responsabilizada civilmente por omissão indevida.
- Infração Ética: O diretor técnico da instituição pode, inclusive, responder a processo administrativo junto ao Conselho Regional de Medicina por desobedecer às resoluções do CFM (Art. 18 do CEM).
Como o Médico Deve Requerer o Prontuário para Sua Defesa?
Para garantir o acesso ao prontuário e evitar objeções, o médico deve seguir um procedimento formal e bem fundamentado:
- Requerimento Administrativo Escrito: A solicitação deve ser feita por escrito, endereçada à Direção Técnica ou ao Serviço de Arquivo Médico e Estatística (SAME) da instituição.
- Clareza do Propósito: O requerimento deve explicitar claramente o objetivo da solicitação: “para fins de defesa em processo ético-profissional/judicial”.
- Identificação do Processo: É fundamental indicar o número do processo (judicial ou ético-profissional) ao qual o prontuário se refere.
- Dados do Atendimento: Fornecer o nome completo do paciente, a data do atendimento (ou período), e o número do prontuário, se conhecido.
- Compromisso com o Sigilo: O médico deve reiterar seu compromisso com a manutenção do sigilo das informações e sua utilização exclusiva para os fins de defesa.
- Cópia Integral: Requerer a cópia integral e legível do prontuário, incluindo anamnese, exame físico, exames complementares (solicitações e resultados), evoluções, prescrições e orientações.
Considerações Finais
O acesso do médico ao prontuário para sua própria defesa não é um privilégio, mas um direito inegável, legal e eticamente respaldado. Compreender e aplicar corretamente essa prerrogativa é essencial para garantir a justiça nos processos que envolvem a conduta médica e para proteger a dignidade profissional. Instituições de saúde e médicos devem estar cientes de seus direitos e deveres para que a ética e a lei caminhem juntas, sempre em prol da boa prática médica.
Fernanda Azanha T. N. Angotti
OAB/SP 298.096
Importante: Este artigo possui caráter exclusivamente informativo e educacional, não constituindo consultoria jurídica personalizada. Cada situação apresenta particularidades específicas que exigem análise individualizada por profissional habilitado.
